Procuram-se traficantes de escravos
Onde estão as estátuas dos escravizadores de povos nativos e africanos espalhadas pelo Brasil e quem foi cada um deles?
Por Felipe Rebouças
Desbravadores, benfeitores e mecenas. Assim a sociedade brasileira ainda interpreta a trajetória de traficantes de escravos como Manoel Borba Gato, Bartolomeu Bueno, João Ramalho e tantos outros. A prova disso é a existência de estátuas que homenageiam suas memórias espalhadas ao redor do país, além de nomes de praças, praias e logradouros. Homens que de alguma forma atenuaram o passado como comerciantes de seres humanos e exploradores de minérios ao entregar os últimos anos de vida à filantropia ou por terem se destacado por trajetórias de vida aventureiras e corajosas.
Na semana passada, no contexto da onda de protestos antirracistas, antisistémicos e pró-democracia, engendrada pelo assassinato de George Floyd — sufocado até a morte por um policial branco no dia 25 de maio, na cidade de Minneapolis (EUA) — manifestantes britânicos derrubaram a estátua do comerciante de escravos e alto funcionário da Royal African Company¹, Edward Colston, e a despejaram no rio Avon², na cidade de Bristol. As imagens do acontecimento rodaram o mundo, gerando uma série de pedidos formais de remoção e desvinculação de nomes de escravocratas de monumentos, praças, edifícios e ruas europeias.
Estátuas de personagens ligados à escravidão colonial são removidas na Europa
No Brasil, a moda ainda não pegou. Justamente no último país do continente americano a abolir a escravidão (1888). O que, paralelo com o que escreveu o historiador francês Jacques Le Goff sobre identidade coletiva, tem relação com a existência de monumentos em homenagem à traficantes de escravos, conforme passagem presente na obra História e Memória, de 1924:
“O monumentum é um sinal do passado. Atendendo às suas origens filológicas, o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação, por exemplo, os atos escritos. (…) O monumento tem como características o ligar-se ao poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas (é um legado à memória coletiva) e o reenviar a testemunhos que só numa parcela mínima são testemunhos escritos”
Portanto, é mister sinalizar que toda estátua é memória e sentimentos vivos do material erguido, seja a representação de um sujeito, animal ou objeto. Nesse sentido, a memória de muitos traficantes de escravos ainda habita a identidade nacional brasileira. O que gera um debate extenso entre historiadores sobre o que deveria ser feito diante disso: demolição ou manutenção do monumento?
Artista Banksy propõe nova versão de estátua de Edward Colston e exibição desta em museu
Para o historiador Laurentino Gomes, essas estátuas, ainda que façam menção a traficantes de escravos, fazem parte do patrimônio histórico nacional. “Estátuas, prédios, palácios e outros monumentos devem ser preservados como objetos de estudo e reflexão. Ao passar por elas [estátuas], as pessoas devem saber quem foi o personagem e como foi parar no panteão dos heróis nacionais”, argumenta.
Em entrevista ao jornal baiano Correio, o historiador Carlos Silva Jr. afirmou ser a favor da retirada de estátuas de traficantes de escravos de locais públicos e realocação das mesmas para um museu destinado às memórias da escravidão no Brasil. “A estátua ignora que foi o dinheiro do tráfego que construiu sua fortuna. Quando se ignora isso, constrói uma memória que lança sombra sobre essa parte da vida dele que precisa ser discutida. Sou a favor da retirada. Nos falta um museu da escravidão, é lá onde ela [a estátua] deveria ser colocada porque assim se contextualiza o personagem”, diz, em entrevista ao veículo soteropolitano.
A seguir, levantamento feito pelo Coletivo Panorama mostra onde estão as estátuas de traficantes de escravos espalhadas pelo país e quem foram esses personagens na história do Brasil:
Baltazar Fernandes
Nascido em 1580, conhecido como fundador da cidade de Sorocaba, Baltazar Fernandes chegou a ser dono de 400 indígenas em meados do século XVII. Sua vida se resumia à exploração de terras e à caça de índios para serem explorados em suas propriedades. Foi alferes — correspondente a cadete — na bandeira chefiada por seu irmão André Fernandes em 1613, em direção ao interior do país, mais precisamente no rio Paraupava, atual Araguaia. Também na divisão chefiada por seu irmão, participou da bandeira Francisco Bueno (pai e avô de Bartolomeu Bueno da Silva, homônimos), em direção ao Rio Grande do Sul. Expedição que lhe rendeu terras e novos escravos.
De origem judaica (cristão-novo), ele matou com um tiro na cabeça o padre Diogo de Alfaro, enviado pela Inquisição para investigar hereges paulistas. Nos últimos anos de vida, edificou uma capela de Nossa Senhora da Ponte, atual Catedral Metropolitana de Sorocaba, além de doar terras, plantações e escravaturas indígenas aos beneditinos. Gesto que fez aceno e agradou a Igreja Católica. Logo em seguida, em contato com o governador geral de São Paulo, Correa de Sá e Benevides, conseguiu transformar o povoado de Sorocaba em Vila. De imediato, Sorocaba ganhou sua Câmara Municipal e Baltazar Fernandes assumiu o cargo de juiz.
A estátua pode ser encontrada no Largo de São Bento, centro de Sorocaba, em frente ao Mosteiro de São Bento. Ela foi instalada no dia 15 de agosto de 1954, data que marca o terceiro centenário da cidade, a pedido da colônia espanhola existente na cidade, fundida em bronze e feita pelo escultor Ernesto Biancalana.
Bartolomeu Bueno (pai)
Bartolomeu Bueno da Silva, o primeiro Anhanguera — termo tupi que significa diabo velho — ficou conhecido por extorquir indígenas de uma forma inusitada. Seguindo a trilha das bandeiras realizadas por Antônio Raposo Tavares, Manuel Preto e André Fernandes, Bartolomeu Bueno praticou o bandeirismo minerador ao chegar no atual estado de Goiás, nas margens do rio Araguaia. No local, encontrou uma aldeia indígena do povo Goiá.
Dizem os escritos que ao perceber que as índias estavam adornadas com chapas de ouro, o bandeirante pôs fogo numa tigela com aguardente e ameaçou queimar todos rios e fontes da aldeia. Assustados, os índios informaram a localização da fonte de minérios naturais.
A estátua está localizada na praça Attillio Corrêa Lima, conhecida popularmente como Praça do Bandeirante, no centro de Goiânia, no cruzamento das avenidas Goiás e Anhanguera. A escultura em bronze, de 3,5 metro de altura, criada em 1942 por Armando Zago provém de um pedido do Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito de São Paulo, presidido por Antônio Sylvio Cunha Bueno à época. O CA teria dito que a estátua se tratava de um presente a ser doado ao povo goiano pelo desbravamento realizado por Bartolomeu.
Bartolomeu Bueno (filho)
Nascido em 1679, em Parnaíba, São Paulo, Bartolomeu Bueno seguiu os passos do pai ao seguir a trilha do ouro. Ao longo do século XVIII se estabeleceu em cidades como Sabará, Pitangui, ambas em Minas Gerais, indo até São João do Pará, atual São João do Araguaia. Depois seguiu para Goiás e conseguiu encontrar ouro no rio Vermelho, novamente sob extorsão e ameaça aos índios da região. Na qualidade de capitão-mor regente das minas, fundou o arraial de Santana, atualmente cidade de Goiás.
E sob concessão de Dom João V, Bartolomeu adquiriu sesmarias e a cobrança de direitos sobre a passagem de rios que conduziam às minas goianas. No entanto, por sonegação de renda à coroa portuguesa, o direito lhe foi retirado em 1733. Faleceu sem bens, em 1740.
Inaugurada em 11 de agosto de 1924, nos jardins do Palácio dos Campos Elíseos, a estátua foi transferida depois de 11 anos para a frente do parque Trianon, na avenida Paulista, onde se encontra atualmente. Foi entalhada em mármore pelo escultor italiano Luigi Brizzolara.
Francisco Dias Velho
Fundador do povoado da Nossa Senhora do Desterro em 1679, atual Florianópolis, Francisco Dias Velho, acompanhado do pai homônimo, dizimou, escravizou e extorquiu indígenas ao longo da costa meridional brasileira. Adepto das bandeiras colonizadoras, Dias Velho apropriou-se das terras dos índios e exerceu o dito processo civilizatório dos nativos. Casado com Maria Pires Fernandes, filha do capitão Salvador Pires de Medeiros, tiveram 12 filhos. Morreu num ataque de piratas, ocorrido entre 1679 e 1680.
Localizada embaixo do Elevado Francisco Dias Velho, a estátua contém uma placa da prefeitura, instalada durante a gestão de Ângela Amin, com a seguinte frase: “O reconhecimento do povo de Florianópolis”.
João Ramalho
Nascido em 1493, o português João Ramalho é conhecido como patriarca dos bandeirantes. Chegou ao Brasil em 1515 e passou a maior parte da vida entre os índios tupiniquins no povoado de Santo André da Borda do Campo, atual município de São Caetano do Sul, primeira localidade registrada pelos portugueses a se distanciar do litoral. João até chefiou uma aldeia ao se tornar amigo próximo do cacique Tibiriçá (‘vigilante da terra’, em tupi), importante líder tupiniquim à época. Com os primeiros anos da colonização portuguesa em curso, ele se tornou alcaide (prefeito) da vila de Santo André da Borda do Campo, elevada a tal designação pelo governador-geral Tomé de Sousa.
Ramalho então fundou a etnia mameluca — filhos de índios com portugueses, muitas vezes oriundos de violência e abusos sexuais cometidos pelos europeus — responsável em boa parte pelas incursões comercial-militares território adentro, conhecidas hoje como entradas e bandeiras. Devido ao bom fluxo entre os índios, Ramalho tinha posse sobre índios de tribos rivais escravizados e aprisionados e os comercializava com os portugueses. Ele teria sido o primeiro traficante de escravos de toda história brasileira.
A estátua de João Ramalho pode ser encontrada na Praça dos Correios, próximo ao marco zero da cidade de Santo André.
Joaquim Pereira Marinho
Nascido em Portugal, no ano de 1816, Joaquim aportou em Salvador aos 13 anos. Órfão, ele começou a trabalhar como caixeiro e marítimo. Ainda adolescente resolveu se especializar no comércio de escravos e, aos 17 anos, trazia homens e mulheres africanos de países como Nigéria e Angola para Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, principalmente. A Bahia era uma rota secundária, apesar de morar em Salvador.
Trabalhou durante 30 anos no ramo e, no auge, chegou a ter 13 embarcações. A última leva de escravos foi transportada por ele em 1850, quando a escuna Catota desembarcou 450 escravos no Rio de Janeiro. Naquele ano, o tráfico de escravo foi oficialmente abolido pela Lei Eusébio de Queiroz.
Após a proibição, tentou ao máximo desvencilhar sua imagem do comércio de seres humanos e para isso contou com o apoio da nobreza soteropolitana, com quem tinha boas relações. Com uma fortuna de 8 mil réis — equivalente a R$ 1 bilhão atualmente — o conde Pereira Marinho, como ficou conhecido, se dedicou à filantropia e financiou a retomada da construção do Hospital Santa Izabel, após 40 anos de obras interrompidas. Seu enterro, no dia 26 de abril de 1887, teve a presença de mais de duas mil pessoas, segundo os jornais da época.
A estátua erguida em 1893 pode ser encontrada no Hospital Santa Izabel, localizado na Praça Conselheiro Almeida Couto, Salvador, Bahia.
Manoel Borba Gato
Conhecido por descobrir o filão de ouro das minas de Sabará e por ser genro do bandeirante Fernão Dias, Borba Gato nasceu em São Paulo, em 1649. Ao longo das expedições contribuiu na extorsão e escravização de nativos, se envolveu em brigas e até assassinou um enviado da corte portuguesa por disputas de poder e bens. Após oito anos foragido, fez uma espécie de acordo de leniência com o governor-geral do Rio de Janeiro, Arthur de Sá, trocando informações privilegiadas sobre fontes de minério em troca de sua liberdade.
Erguido como herói nacional e desbravador do interior brasileiro, Borba Gato foi mais um bandeirante que se fez às custas das riquezas naturais do país e do sofrimento dos povos nativos. Quando faleceu, em 1718, com quase 70 anos de idade, ocupava o cargo de juiz ordinário da vila de Sabará.
Com 10 metros de altura e pesando 20 toneladas, a escultura de Borba Gato composta por argamassa, trilhos e pedras, feita por Júlio Guerra, e erguida em 1960, está localizada na Praça Augusto Tortorelo de Araújo na cidade de São Paulo, distrito de Santo Amaro.
Pascoal Moreira Cabral
Nascido em Sorocaba, no ano de 1654, Pascoal Moreira Cabral se dedicou desde muito cedo ao bandeirismo predador de índios. Sua primeira expedição, em 1682, explorou o atual território sul-mato-grossense, na região de Miranda. Local onde passou três anos aprisionando e escravizando nativos para trabalharem numa plantação de subsistência, enquanto erguia trincheiras. Nesse período teve dois filhos, oriundos de relações sexuais com uma índia.
Retornou à São Paulo, onde se casou oficialmente com Isabel Siqueira Cortes, natural da Paraíba. A relação gerou quatro filhos, um deles morreu no sertão em decorrência de ataques de índios. Depois de capitanear bandeiras na região de Curitiba e Miranda, novamente, Moreira Cabral se direcionou ao atual município de Cuiabá, subindo o rio Paraguai, chegando até o seu afluente, o Caxipó, onde descobriu fontes de minério e travou batalhas sangrentas com os grupos indígenas locais. Após a carnificina, se estabilizou no local, extrair o quanto pode e morreu em paz aos 76 anos, em 1730. Seu corpo foi sepultado na Igreja Matriz Senhor Bom Jesus, em Cuiabá.
Localizada na avenida Coronel Escolástico, no bairro Bandeirantes, a estátua contruída em comemoração aos 250 anos da fundação de Cuiabá coloca Pascoal ao centro, representando um bandeirante esguio e poderoso, e dos lados, abaixo dele, figuras que representam o negro e o índio.